“Se Jesus não tivesse entregue a si mesmo, ninguém o teria entregue” (Santo Agostinho)
Para abordar a riqueza toda de Jesus Cristo não há outro jeito senão inventar palavras, como imatável, que soa melhor do que inassassinável.
Que Jesus rompeu os grilhões da morte “porque era impossível que a morte o retivesse” (At 2.24), todo mundo sabe. Que Jesus estava com Deus e era Deus no princípio mais distante no tempo e no espaço (Jo 1.1), ninguém duvida. Que Jesus é o Alfa e o Ômega”, o que é, o que era e o que há de vir” (Ap 1.8), os verdadeiros cristãos professam com absoluta segurança. Mas que Jesus é imatável, soa como surpresa para muita gente.
Talvez não haja palavra mais apropriada para mostrar a autoridade de Jesus sobre sua própria vida. Jesus é imatável porque ele não pode em hipótese alguma e em tempo algum ser morto. Foi o Senhor mesmo quem o declarou: “Ninguém [...] tira [a minha vida de mim], mas eu a dou por minha espontânea vontade. Tenho autoridade para dá-la e para retomá-la. Esta ordem recebi de meu Pai” (Jo 10.18).
Todas as vezes que os cristãos comemoram a morte vicária e a ressurreição de Jesus por meio da celebração da Ceia do Senhor, a idéia do Jesus imatável vem à tona. Pois o oficiante repete as palavras de Jesus pronunciadas no cenáculo na noite de quinta para sexta-feira da semana da paixão: “Isto é o meu corpo, que é dado [ou entregue ou partido] em favor de vocês” (1Co 11.24).
Quando o Verbo tornou-se carne e viveu entre nós, visível, audível e palpável, por um período em torno de 33 anos, houve pelo menos três sérias tentativas de morte contra ele, todas infrutíferas, o que naturalmente reforça a tese do Jesus imatável.
Primeira tentativa Quando o rei Herodes, o Grande, ouviu os magos se referirem a Jesus como “rei dos judeus”, ele se perturbou e tentou localizar o recém-nascido em Belém para lhe tirar a vida. Como os magos não lhe deram a informação, Herodes “ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades” (Mt 2.16).
Ora, Herodes era um adversário de peso, um homem sem escrúpulos, perigoso e cruel, que já havia mandado matar a sogra Alexandra, os cunhados Aristóbulo e Costobardes, a esposa Mariane e os filhos Alexandre e Antípatro. Ele tinha 70 anos na época da matança dos inocentes de Belém, uns vinte meninos de peito. Mas Jesus não estava entre eles, pois José, por orientação divina, já o havia levado a salvo para o Egito (Mt 2.13-14).
Segunda tentativa “Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou o seu ministério” (Lc 3.23). Certo sábado, entrou na sinagoga de Nazaré, cidade da Galiléia, onde havia crescido, leu duas passagens de Isaías (58.6; 61.1-2) e acrescentou solenemente: “Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir”. Todos o escutavam com interesse e admiração. Mas, quando Jesus engrossou o discurso, eles reagiram: “Todos na sinagoga se indignaram [e] levantando-se, expulsaram-no para fora da cidade e o levaram a um precipício do monte sobre o qual estava construída a cidade, com intenção de precipitá-lo de lá” (Lc 4.28-29, BP).
Que Jesus correu sério risco de vida nesse lugar e nesse momento, não resta a menor dúvida. Ele estava no meio de pessoas “tomadas de cólera” (na versão da Comunidade de Taizé) e num lugar perigoso (à beira de um abismo), porém, nenhum mal lhe aconteceu, pois Jesus estranhamente “passou pelo meio da multidão e foi embora” (Lc 4.30, NTLH). Então ele se dirigiu para Cafarnaum, mais ao norte, uma cidade ao noroeste do mar da Galiléia.
Terceira tentativa Por não ter princípio nem fim, por ser auto-existente, por ser eterno, obviamente Jesus era mais velho que todos os personagens do Antigo Testamento, tais como Isaías (que viveu 700 anos antes de seu nascimento), Davi (que viveu 1.000 anos antes), Moisés (que viveu 1.500 anos antes) e Abraão (que viveu 2.000 anos antes). Isso quer dizer que Jesus não mentiu nem blasfemou ao declarar aos judeus com toda a simplicidade e clareza: “A pura verdade é que Eu já existia antes de Abraão nascer!” (Jo 8.58, BV). Na verdade, Jesus foi muito mais peremptório, por ter usado o título divino “Eu Sou” (ou “Eu Existo”), cujo verbo está no presente. Foi com esse nome que Deus se apresentou a Moisés quando o incumbiu de retirar o povo de Israel do Egito (Êx 3.14-15).
Porque não reconheciam Jesus como Deus em figura humana, os judeus não acreditaram nele e entenderam que ele estava blasfemando o santo nome de Deus e, portanto, de acordo com a lei, era réu de morte (Lv 24.15-16). “Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo” (Jo 8.59). O Evangelho de João não entra em detalhes, assim como o de Lucas no episódio anterior, de Nazaré. Diz apenas: “Jesus se ocultou [ou se escondeu] e saiu do templo”.
O que aconteceu na sexta-feira
A prisão e a morte de Jesus na sexta-feira anterior à ressurreição não colocam em dúvida a sua já citada declaração: “Ninguém tira a minha vida de mim”. Nem desacreditam a sábia observação de Santo Agostinho: “Se Cristo não tivesse entregue a si mesmo, ninguém o teria entregue”. Aliás, é pertinente lembrar que Jesus não é apenas imatável, ele é também imprendível. Embora os judeus tivessem tentado prendê-lo várias vezes, não conseguiram porque, como João mesmo registra, “a sua hora [de ser preso e morto] ainda não havia chegado” (Jo 7.30; 8.20). Ambos os infortúnios (prisão e morte) e ambas as manifestações gloriosas (ressurreição e ascensão) estavam em sua agenda e iriam se concretizar no tempo oportuno, uma coisa depois da outra. Quando chegou a hora exata de sua prisão e morte, o próprio Jesus o admitiu: “Eis que se aproxima o momento, e já chegou” (Jo 16.32, TZ). Somente aí, na manhã de sexta-feira, nem antes nem depois, Jesus foi preso, e, cerca de nove horas depois, morto. Poucos dias antes, frente ao sofrimento prestes a chegar, o Senhor suspirou: “Agora estou sentindo uma grande aflição. O que é que vou dizer? Será que vou dizer: Pai, livra-me desta hora de sofrimento? Não! Pois foi para passar por esta hora que eu vim” (Jo 12.27, NTLH).
Antes de afirmar que ninguém teria o poder ou a ocasião de lhe tirar a vida, Jesus se apresentou como o bom pastor e definiu o caráter do pastor não-mercenário: “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10.11).
Em meio aos acontecimentos da Sexta-feira da Paixão há pelo menos mais duas evidências de que Jesus é de fato imatável. Quando Pedro puxou a espada para defender o Senhor no Jardim do Getsêmani, Jesus ordenou que ele recolhesse a arma e lhe disse: “Você não percebe que eu poderia pedir ao meu Pai milhares de anjos [mais de doze legiões de seis mil seres extra-terrestres] para nos protegerem, e Ele os mandaria no mesmo instante?” (Mt 26.53, BV). Em outras palavras, Jesus estava explicando: “Eu posso escapar de mais esta séria tentativa de morte, como escapei das anteriores, mas, desta vez, não o farei”. Quando Pôncio Pilatos caiu na asneira de dizer a Jesus que, na qualidade de governador romano, tinha poder para libertá-lo ou crucificá-lo, o Senhor respondeu de pronto: “Não terias nenhuma autoridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima” (Jo 19.10).
A inefável generosidade de Deus
Ninguém deve nem sequer imaginar que a renúncia de Jesus em usar sua ilimitada autoridade (Mt 28.18) e seus extraordinários recursos em favor da liberdade e da vida foi algo suportável e fácil, à vista de sua dupla natureza (humana e divina). Naquele dia sombrio (as trevas cobriram toda a terra do meio dia às três horas da tarde), Jesus deixou-se prender (ele foi amarrado, algemado) e deixou-se matar (ele foi espancado, esbofeteado, açoitado, ferido e crucificado). Jesus não foi anestesiado antes de ser desprezado e rejeitado pelos homens, atingido e afligido por Deus (como representante do homem pecador), traspassado e esmagado por causa de nossas iniqüidades, e finalmente levado para o matadouro e eliminado da terra dos viventes (Is 53). Durante os seus trinta e poucos anos de permanência no tempo e na história e na companhia dos homens (Jo 1.14), em nenhum momento Jesus abriu mão de sua divindade nem de sua humanidade. Na madrugada daquela sexta-feira no Getsêmani, Jesus começou a entristecer-se e angustiar-se e desabafou com seus discípulos: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal” (Mt 26.38). Ele chegou a desejar o afastamento do cálice de sofrimento e morte, na famosa oração três vezes feita com o rosto em terra: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero [neste momento], mas sim como tu queres” (Mt 26.39). A prisão e a morte de Jesus Cristo não foram encenações teatrais, mas experiências vividas. Os dois infortúnios atingiram aquele corpo gerado pelo Espírito Santo no ventre de uma mulher virgem, que quase foi morto por Herodes ao nascer e que então morreu por sua espontânea vontade. É por isso que os celebrantes da Santa Ceia repetiu sempre: “Isto é o meu corpo, que é dado em favor de vocês” (1Co 11.24). Paulo deixa bem claro que a reconciliação entre Deus e os homens foi feita “por meio da morte do seu próprio corpo humano na cruz” (Cl 1.22, BV).
Porque Jesus é imprendível e imatável, mas deixou-se prender e matar em benefício da nossa plena redenção, “agradeçamos a Deus o presente que ele nos dá [o próprio e único filho], um presente que palavras não podem descrever” (2 Co 9.15, NTLH)!